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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

As Letras Sombrias

As letras sombrias

Bastou que a campainha tocasse uma vez, tímida e melódica, quase inaudível, para que ele levantasse da poltrona onde estava languidamente recostado absorvido na leitura do seu exemplar de As letras sombrias. Pousou o livro na mesa em frente e foi atender seu visitante tardio. Andava com dificuldade desde o acidente de carro há um ano, quando, por um triz, não perdera a vida. Agora, poucos dias após sair do hospital no qual ficara encarcerado por meses, ele estava parcialmente recuperado. Sequelas? Apenas a perda do pé direito, esmagado nos destroços metálicos do automóvel. Mas, poderia ter sido pior.
Apoiado na bengala, com a qual ainda não se acostumara, abriu a porta. O homem do lado de fora o olhava com uma expressão apreensiva, quase assustada. A escuridão não lhe permitia ver com clareza o rosto do seu anfitrião, então ficou parado, à espera de um convite para entrar. O dono da casa, repuxando os lábios num sorriso artificial e sarcástico, fez um gesto teatral de quem cumprimenta um rei e se afastou da porta, dando espaço para que o outro entrasse. Assim que passou pela soleira, ouviu o clique de um interruptor e a sala onde estava foi inundada de uma luz melancólica e mortiça.
- John? – pergunta o visitante, empalidecendo mortalmente ao ver quem estava diante de si. Quem lhe enviara a carta anônima.
- Olá, velho amigo – diz o outro, afetando mais prazer com a surpresa do outro do que realmente sentia.
O visitante estava agora com a testa molhada; poderia ter sido da chuva que tamborilava insistentemente lá fora, mas não era. Os seus olhos estavam arregalados, a boca seca.
- John, você... Que significa isso?! – consegue, a custo, perguntar, atropelando a lógica. Decididamente, não esperava encontrar aquele homem tão cedo. Talvez não esperasse encontrá-lo nunca mais.
- Por favor, George, é assim que se reage a um reencontro com o melhor amigo? Eu contava que você fosse ficar surpreso, mas não a esse ponto. Você está tremendo, homem! Vamos, tire essa capa e sente-se; não faça o papelão de desmaiar na minha sala!
Mais por reação automática do que por obediência, George senta-se na poltrona em que minutos antes estava o dono da casa. Vê As letras sombrias sobre a mesa e desvia o olhar rapidamente. John pede que ele aguarde um instante enquanto vai, mancando, até outro cômodo. Não demora dois minutos e retorna à sala com uma garrafa e duas taças. Enche as taças e entrega uma delas a George, sorrindo.
-Isto deverá acalmá-lo e deixá-lo mais à vontade.
Este cretino é bem capaz de envenenar-me!”, pensa George, alarmado, sem nenhuma vontade de beber. John segurava sua taça enquanto falava, mas sem levá-la aos lábios.
-Quando... Quando você saiu do hospital? – pergunta, atordoado, tentando puxar conversa e, enfim, descobrir por que tinha sido chamado ali com tanta urgência.
- Há algum tempo – responde o outro, evasivamente. – Não está feliz em me ver?
- Sim, sim, claro! – diz George, precipitado. – Só que achei que você devia ter entrado em contato antes...
- É difícil entrar em contato quando se está em coma, sozinho, abandonado num quarto miserável de hospital. É meio melancólico, sabe?
- Eu queria ter ido lá mais vezes, mas... estive tão ocupado e Nora...
- Sim, George, eu sei. Em quase um ano, você não teve tempo para nada, esteve preparando seu casamento, o lançamento do seu livro e aproveitando a fama, não?
Dizendo isto, John agarrou o livro sobre a mesa e recitou:
- “As letras sombrias”: Um romance de George Brown Smith!
- Eu... Você deixou os originais comigo, depois houve o acidente e eu não sabia o que fazer, e eu...
- Sim, eu entendo, acalme-se. Estando com um material tão bom, seria um grande desperdício engavetá-lo porque o autor se fodeu, desculpe o termo. Foi bastante sensato assumir a autoria, até porque você certamente não esperava me rever tão cedo, não é? Qualquer pessoa com senso de oportunidade faria isto.
George estava sem palavras. Pousara a taça na mesa, a mão tremia. Aquilo estava pior do que ele pensava. Decidiu ir direto ao ponto, acabar com o suplício:
- A carta...? – sussurrou, cada vez mais pálido. – A carta... foi você... por quê...?
- Ah, sim, a carta. A carta na qual pergunto se a Sra. Nora Smith ficaria satisfeita em descobrir as estranhas preferências extraconjugais do marido... A carta onde pergunto o que ela pensaria de ver seu marido, agora um escritor bem-sucedido em uma situação tão... indiscreta. Aquele rapaz é tão jovem! Vejo nessas fotos (diz, observando com atenção uma fotografia que retira de um grande envelope) que ele não tem vinte anos ainda... As mulheres já não são muito tolerantes à traição ‘convencional’, meu amigo! Isto seria um escândalo e tanto nessa sociedade conservadora em que vivemos.
George agora estava vermelho, suando da cabeça aos pés, morto de vergonha.
- Por favor, George, não se constranja. Eis aqui as fotografias, as quais eu não pretendia utilizar de modo algum. Amigos não se chantageiam, não é? Somente as mencionei porque estava ansioso para revê-lo e parabenizá-lo pelo sucesso da minha obra. Agora, diga-me, apenas por curiosidade: qual é mesmo a idade dele?
-Dezenove – murmura o outro, extremamente constrangido.
- Hmm... Só peço uma coisa, meu amigo: seja mais discreto de agora em diante. Mas, espere, vejo-o apreensivo e calado, você não era assim! O quê? Crê que ainda possa usar esse material contra você? Ora, não ofenda nossa amizade dessa forma. Não o julgo por suas preferências... amplas na vida pessoal. Quem de nós não tem algo a esconder? Tome. – diz, sorrindo, estendendo o envelope comprometedor para George, que o agarra vorazmente e esconde no bolso da camisa, mantendo a mão em cima com firmeza.
- Agora, por favor, para encerrarmos a conversa com chave de ouro, proponho um brinde ao seu sucesso literário!
George lançou um olhar desconfiado à sua taça onde um líquido dourado pálido e de cheiro amendoado brilhava, tentador.
- É Verte Suisse, importado, um excelente absinto – explica John, feliz. – Você gostava de bebidas fortes, pelo que me lembro. Estou certo em crer que este hábito não mudou?
- Claro – diz o outro, sem despregar os olhos de John, que ainda não bebera nem uma gota.
Então, repentinamente, de um só gole, John sorveu todo o conteúdo de sua taça, fazendo cara de intenso deleite em seguida.
“Que bobagem!”, pensa George. “Acabemos logo com esse teatro, quero ir embora da casa desse louco. Pirou de vez, mas ao menos me deixará em paz agora. Eu o vi beber, estou ficando paranoico.”
Imitando o gesto de John, ele emborcou a taça de um gole só. Imediatamente sente o torpor típico da bebidas fortes; mais que isso, o mundo começa a girar em torno de si. A respiração é interrompida, ele leva as mãos à garganta, afrouxando o colarinho com dificuldade.
- Sabe, George – diz John, de costas, servindo-se de outra rodada de absinto. – não é muito difícil conseguir cianureto por aí. Também não é muito difícil ‘untar’ uma taça com cianureto nas bordas. Mas, acalme-se, eu não envenenei o absinto, que, aliás, é ótimo. Só há veneno nas bordas da sua taça.
O outro se atirara no chão, agonizava em silêncio, sem poder emitir nenhum som, sem respirar.
- Sabe de outra coisa, George? O que mais me revolta é que você nem sequer mencionou a mim na dedicatória ou nos agradecimentos do livro... Sabe como é, “Ao meu amigo John, por ter tido a fortuna de morrer e permitir que eu plagiasse sua obra”.
O outro já não ouvia nem agonizava. Jazia no piso onde se jogara, sendo sugado pela escuridão definitiva. Talvez, em algum ponto remoto do que restava de sua consciência, ele tenha ainda ouvido o clique do interruptor e o cheiro distante da gasolina que se alastrava pela casa.

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