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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

As Letras Sombrias

As letras sombrias

Bastou que a campainha tocasse uma vez, tímida e melódica, quase inaudível, para que ele levantasse da poltrona onde estava languidamente recostado absorvido na leitura do seu exemplar de As letras sombrias. Pousou o livro na mesa em frente e foi atender seu visitante tardio. Andava com dificuldade desde o acidente de carro há um ano, quando, por um triz, não perdera a vida. Agora, poucos dias após sair do hospital no qual ficara encarcerado por meses, ele estava parcialmente recuperado. Sequelas? Apenas a perda do pé direito, esmagado nos destroços metálicos do automóvel. Mas, poderia ter sido pior.
Apoiado na bengala, com a qual ainda não se acostumara, abriu a porta. O homem do lado de fora o olhava com uma expressão apreensiva, quase assustada. A escuridão não lhe permitia ver com clareza o rosto do seu anfitrião, então ficou parado, à espera de um convite para entrar. O dono da casa, repuxando os lábios num sorriso artificial e sarcástico, fez um gesto teatral de quem cumprimenta um rei e se afastou da porta, dando espaço para que o outro entrasse. Assim que passou pela soleira, ouviu o clique de um interruptor e a sala onde estava foi inundada de uma luz melancólica e mortiça.
- John? – pergunta o visitante, empalidecendo mortalmente ao ver quem estava diante de si. Quem lhe enviara a carta anônima.
- Olá, velho amigo – diz o outro, afetando mais prazer com a surpresa do outro do que realmente sentia.
O visitante estava agora com a testa molhada; poderia ter sido da chuva que tamborilava insistentemente lá fora, mas não era. Os seus olhos estavam arregalados, a boca seca.
- John, você... Que significa isso?! – consegue, a custo, perguntar, atropelando a lógica. Decididamente, não esperava encontrar aquele homem tão cedo. Talvez não esperasse encontrá-lo nunca mais.
- Por favor, George, é assim que se reage a um reencontro com o melhor amigo? Eu contava que você fosse ficar surpreso, mas não a esse ponto. Você está tremendo, homem! Vamos, tire essa capa e sente-se; não faça o papelão de desmaiar na minha sala!
Mais por reação automática do que por obediência, George senta-se na poltrona em que minutos antes estava o dono da casa. Vê As letras sombrias sobre a mesa e desvia o olhar rapidamente. John pede que ele aguarde um instante enquanto vai, mancando, até outro cômodo. Não demora dois minutos e retorna à sala com uma garrafa e duas taças. Enche as taças e entrega uma delas a George, sorrindo.
-Isto deverá acalmá-lo e deixá-lo mais à vontade.
Este cretino é bem capaz de envenenar-me!”, pensa George, alarmado, sem nenhuma vontade de beber. John segurava sua taça enquanto falava, mas sem levá-la aos lábios.
-Quando... Quando você saiu do hospital? – pergunta, atordoado, tentando puxar conversa e, enfim, descobrir por que tinha sido chamado ali com tanta urgência.
- Há algum tempo – responde o outro, evasivamente. – Não está feliz em me ver?
- Sim, sim, claro! – diz George, precipitado. – Só que achei que você devia ter entrado em contato antes...
- É difícil entrar em contato quando se está em coma, sozinho, abandonado num quarto miserável de hospital. É meio melancólico, sabe?
- Eu queria ter ido lá mais vezes, mas... estive tão ocupado e Nora...
- Sim, George, eu sei. Em quase um ano, você não teve tempo para nada, esteve preparando seu casamento, o lançamento do seu livro e aproveitando a fama, não?
Dizendo isto, John agarrou o livro sobre a mesa e recitou:
- “As letras sombrias”: Um romance de George Brown Smith!
- Eu... Você deixou os originais comigo, depois houve o acidente e eu não sabia o que fazer, e eu...
- Sim, eu entendo, acalme-se. Estando com um material tão bom, seria um grande desperdício engavetá-lo porque o autor se fodeu, desculpe o termo. Foi bastante sensato assumir a autoria, até porque você certamente não esperava me rever tão cedo, não é? Qualquer pessoa com senso de oportunidade faria isto.
George estava sem palavras. Pousara a taça na mesa, a mão tremia. Aquilo estava pior do que ele pensava. Decidiu ir direto ao ponto, acabar com o suplício:
- A carta...? – sussurrou, cada vez mais pálido. – A carta... foi você... por quê...?
- Ah, sim, a carta. A carta na qual pergunto se a Sra. Nora Smith ficaria satisfeita em descobrir as estranhas preferências extraconjugais do marido... A carta onde pergunto o que ela pensaria de ver seu marido, agora um escritor bem-sucedido em uma situação tão... indiscreta. Aquele rapaz é tão jovem! Vejo nessas fotos (diz, observando com atenção uma fotografia que retira de um grande envelope) que ele não tem vinte anos ainda... As mulheres já não são muito tolerantes à traição ‘convencional’, meu amigo! Isto seria um escândalo e tanto nessa sociedade conservadora em que vivemos.
George agora estava vermelho, suando da cabeça aos pés, morto de vergonha.
- Por favor, George, não se constranja. Eis aqui as fotografias, as quais eu não pretendia utilizar de modo algum. Amigos não se chantageiam, não é? Somente as mencionei porque estava ansioso para revê-lo e parabenizá-lo pelo sucesso da minha obra. Agora, diga-me, apenas por curiosidade: qual é mesmo a idade dele?
-Dezenove – murmura o outro, extremamente constrangido.
- Hmm... Só peço uma coisa, meu amigo: seja mais discreto de agora em diante. Mas, espere, vejo-o apreensivo e calado, você não era assim! O quê? Crê que ainda possa usar esse material contra você? Ora, não ofenda nossa amizade dessa forma. Não o julgo por suas preferências... amplas na vida pessoal. Quem de nós não tem algo a esconder? Tome. – diz, sorrindo, estendendo o envelope comprometedor para George, que o agarra vorazmente e esconde no bolso da camisa, mantendo a mão em cima com firmeza.
- Agora, por favor, para encerrarmos a conversa com chave de ouro, proponho um brinde ao seu sucesso literário!
George lançou um olhar desconfiado à sua taça onde um líquido dourado pálido e de cheiro amendoado brilhava, tentador.
- É Verte Suisse, importado, um excelente absinto – explica John, feliz. – Você gostava de bebidas fortes, pelo que me lembro. Estou certo em crer que este hábito não mudou?
- Claro – diz o outro, sem despregar os olhos de John, que ainda não bebera nem uma gota.
Então, repentinamente, de um só gole, John sorveu todo o conteúdo de sua taça, fazendo cara de intenso deleite em seguida.
“Que bobagem!”, pensa George. “Acabemos logo com esse teatro, quero ir embora da casa desse louco. Pirou de vez, mas ao menos me deixará em paz agora. Eu o vi beber, estou ficando paranoico.”
Imitando o gesto de John, ele emborcou a taça de um gole só. Imediatamente sente o torpor típico da bebidas fortes; mais que isso, o mundo começa a girar em torno de si. A respiração é interrompida, ele leva as mãos à garganta, afrouxando o colarinho com dificuldade.
- Sabe, George – diz John, de costas, servindo-se de outra rodada de absinto. – não é muito difícil conseguir cianureto por aí. Também não é muito difícil ‘untar’ uma taça com cianureto nas bordas. Mas, acalme-se, eu não envenenei o absinto, que, aliás, é ótimo. Só há veneno nas bordas da sua taça.
O outro se atirara no chão, agonizava em silêncio, sem poder emitir nenhum som, sem respirar.
- Sabe de outra coisa, George? O que mais me revolta é que você nem sequer mencionou a mim na dedicatória ou nos agradecimentos do livro... Sabe como é, “Ao meu amigo John, por ter tido a fortuna de morrer e permitir que eu plagiasse sua obra”.
O outro já não ouvia nem agonizava. Jazia no piso onde se jogara, sendo sugado pela escuridão definitiva. Talvez, em algum ponto remoto do que restava de sua consciência, ele tenha ainda ouvido o clique do interruptor e o cheiro distante da gasolina que se alastrava pela casa.

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domingo, 29 de dezembro de 2013

O Hibisco e o Jasmim

O Hibisco e o Jasmim

Estava a Borboleta sobrevoando calmamente o jardim numa fresca manhã de verão, borboleteando seus devaneios de inseto miúdo – mas, ainda assim, superiores e menos fúteis do que os de muita gente neste mundo –, quando deparou-se  com um pé  de Hibisco, que escarnecia de seu vizinho, o pé de Jasmim.
- Com que então, estás muito contente por teu perfumezinho vulgar, é isto? – dizia o Hibisco, zombeteiro. – Olha, meu caro, que te faltam as graças que eu possuo, motivo pelo qual sou frequentemente visitado pela elite das aves e dos insetos, como esta gentil borboleta que aqui chega. Olé!
A Borboleta, alheia à situação que se passava, mas irritada com a presunção do Hibisco, manteve-se suspensa, batendo as asas, a fim de inteirar-se melhor da discussão.
- Meu caro Hibisco... – começou o Jasmim – bem pouco me importam tuas graças e virtudes, pois sou um vegetal, tanto quanto tu; não vejo, portanto, motivo para que te vanglories sobre mim. Não estamos ambos fixos na mesma terra, regados com a mesma água e ambos florescidos?
- Que disparate! Achas mesmo que és igual a mim? Não vês que minhas flores escarlates são infinitamente superiores às tuas? Olha a magnificência do formato, do tamanho e a beleza inata delas! Que são as tuas florezinhas mirradas e pálidas em comparação a elas?
- Não falo desse tipo de igualdade, amigo Hibisco. Toma por exemplo os seres humanos! São diferentes entre si, mas também são iguais em questões biológicas, de laços de sangue...
- Ahhhhh! Bem mostras que além de seres uma planta miserável, nada sabes sobre os seres humanos! Se soubesses o modo como eles se dividem em castas, elites, classes, saberias por que é fundamental que sigamos seu exemplo e criemos nossas próprias esferas de contato!
- Esferas de contato? – o Jasmim espantou-se notavelmente com semelhante perspectiva. – Pois isto é algo abominável... custo a crer que a gentil e caridosa senhora que cuida de nós, apesar de sua idade avançada, faça parte desse “elitismo” de que falas com tanta convicção... Há casos e casos!
- Ingênua planta tu és... Esta velha raquítica que tão estabanadamente vem aqui todas as manhãs espargir sobre nós gotas mirradas de água (forte sovina, que tem piedade até de gastar o líquido universal), não faz isto porque seja boa ou caridosa! Ela o faz por razões de consumado egoísmo, isso sim! Ter um jardim bonito e cuidado rende elogios ao dono, não às miseráveis plantas que dele fazem parte. Vede, então, que o amor próprio que tenho é totalmente justificável.
- Confundes amor próprio com o mesmo narcisismo e egoísmo que tanto criticas...  Tenho bem pena de ti, pobre Hibisco.
O Hibisco empertigou-se, cheio de si e sentindo-se ofendido em seu orgulho:
- Guarda teus fingimentos para quem não te conhece, hipócrita planta! Sou superior e disso não faço segredo. E bem sei que, apesar de teu moralismo superficial e falsa candura, tens inveja de mim.
A Borboleta, que desde o início deste diálogo nada havia feito de concreto, a não ser apiedar-se do Jasmim e sentir uma repulsa exponencial por seu parceiro, o Hibisco, tomou, afinal, uma decisão, e lá foi pousar -  por desaforo à planta de flores vermelhas -  numa flor branca e perfumada do Jasmim.
Nem bem havia pousado na superfície belissimamente pálida da flor, foi a Borboleta embriagada pelo delicioso e doce aroma que dali emanava. Infelizmente, o êxtase do perfume amorteceu seus sentidos a ponto de impedi-la de aperceber-se de um perigo substancial e imediato. Antes que pudesse experimentar do néctar da flor, sentiu a Borboleta uma forte compressão no ventre delicado, seguido de uma dor lancinante, e só então, em pânico, notou que estava perdida para sempre. Uma aranha de aspecto aterrador havia já cravado suas quelíceras no pobre inseto, que nenhuma reação pôde manifestar,além de agitar as fracas asas duas ou três vezes, por meros espasmos involuntários.
O Hibisco, que a tudo isso assistia, impassível, apenas manifestou sua opinião, de modo sarcástico, dirigindo-se ao Jasmim:
-Bem, bem... meu orgulho e minha superioridade afastam alguns indivíduos de mim, mas ninguém jamais poderá dizer que uso de fingimentos ou que reprimo o que penso. Entretanto, tais indivíduos deveriam ter consciência de que não é a franqueza o maior defeito de alguém, mas o fingimento. Teu fingimento, Jasmim, funciona bem com esses pobres idiotas, que vão a ti, seduzidos por teu perfume  e inocência aparentes. Eu não finjo, e isto me mantém solitário. Não posso dizer que me arrependo de ser como sou. Podes dizer o mesmo?
A aranha, que a esta altura já havia deglutido toda a Borboleta, após limpar a boca com a ajuda de suas finas e longas patas dianteiras, tomou a palavra:
- Permita-me dizer, Hibisco, que tua recusa em me aceitar em teus ramos foi a maior bênção para mim. Aí, eu já teria morrido de fome, já que meu alimento tem desprezo por ti... O mesmo não pode ser dito do Jasmim, que me acalenta e me serve com os melhores e mais saborosos insetos!
O Jasmim, com um riso sinistro e maligno, sussurrou:
- Queres saber por que mantenho a aranha comigo, Hibisco? – e, sem esperar resposta: - Eu não tolero quando esses insetos vêm pousar em mim. O segredo de minhas belas flores brancas é justamente a presença desta caçadora fenomenal, que me limpa de tão desprezíveis criaturas.


***********************
             A manhã avança e, enquanto o Hibisco empertiga-se ainda mais, ostentando sua superioridade (que apenas ele vê dessa forma), o Jasmim recolhe-se em seu aparente recato. Ao longe surge pelo menos meia dúzia de borboletas azuis que, vendo a postura intoleravelmente orgulhosa do Hibisco, direcionam-se todas ao Jasmim... 

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sábado, 9 de novembro de 2013

Amigo

Amigo

- Vamos nos casar!
- Parabéns, Victor! Fico feliz por você, amigo!
- Lúcia é tudo que eu procurava em uma mulher, Flávio! Quando você conhecê-la, sempre tão gentil e inteligente, além de linda, claro, saberá por que tenho tanta pressa em desposá-la... e por que marquei o casamento para abril!
- Abril? Mas, está muito próximo! Já estamos no fim de janeiro.
-E eu ainda acho que é muito tempo! Quero casar com ela, ter dois filhos, um cachorro e uma casa de frente para o mar, em alguma praia do nordeste! E você, meu caro amigo, será o padrinho!
-É muita honra, Victor. – eu argumentei, rindo da espontaneidade com que ele fazia seus planos - Por mais que eu me sinta lisonjeado, sinto que talvez não seja digno o suficiente para uma ocasião tão especial.
- Bobagem! Você é meu melhor amigo, Flávio; ninguém mais pode ocupar o cargo de padrinho do meu casamento além de você... a não ser que não queira; aí é outra história...
- Claro que eu quero – eu disse, precipitadamente, antes mesmo que ele terminasse a frase.
- Que bom, então – ele falou, muito satisfeito, e depois, lembrando-se de algo importante, completou – Ah, outra coisa: hoje à noite vamos jantar naquele restaurante novo que abriu na Rua..., conhece? É uma boa oportunidade para você conhecer a Lúcia e dizer se eu tenho ou não razão de desejá-la tanto!
            Respondi-lhe que não sabia onde ficava este restaurante, ele passou-me o endereço e despediu-se, dizendo que nos encontraríamos logo mais, à noite lá. Eram duas horas da tarde quando Victor foi embora; fazia mais de três anos que eu não o via. Crescemos juntos, éramos amigos de infância, confidentes das travessuras de criança aos desabafos por desilusões ou sucessos amorosos da adolescência. Nossas casas eram na mesma rua e só nos separamos quando terminamos o ensino médio; eu permaneci na mesma cidadela, já que era muito simplório, não possuía grandes planos para o futuro, mas Victor era sonhador, tinha espírito um tanto aristocrático, meio orgulhoso, dizia-me sempre que não queria “morrer naquele pardieiro”. Foi para o sul do país e, com a ajuda de parentes comerciantes que possuía por lá, fez alguma fortuna e, obviamente, começou a construir seu futuro promissor. Foi lá que conheceu Lúcia, por quem se enamorou. Tudo isso ocorreu durante o intervalo dos três anos em que estivemos separados. Depois desse tempo, ele anunciou que retornaria à terra natal por uma temporada, para mostrá-la à sua noiva e matar as saudades de sua gente.
            Grandes foram o espanto e alegria que senti quando ele comunicou-me sua volta, ainda que provisória, à nossa cidade. Na verdade, parte dessa surpresa deve-se ao período em que estivemos sem nos falar, uma vez que depois de sair da cidade ele não tenha tido tempo para estabelecer contato comigo. Então, alegre por seu retorno, abri o guarda-roupa, peguei minhas melhores vestimentas e escolhi a que mais se adequaria à situação. Assim que deu o horário marcado, dirigi-me ao restaurante designado.
            Logo ao chegar, ainda do lado de fora do estabelecimento, vi meu amigo sentado a uma mesa, de frente para a porta, embora mais ou menos no centro do restaurante. A pessoa que o acompanhava estava de costas para a porta, bem à frente dele. Era a noiva dele, com certeza; tinha cabelos longos, lisos, pretos e vestia uma blusa lilás com listras pretas. O rosto eu não pude ver, mas, pela forma como agitava os ombros, era claro que estava achando graça em algum ditério do meu amigo, que finalmente me enxergou, enquanto eu cumprimentava o garçom que me abordou assim que transpus a entrada. Victor estava sorrindo amplamente, mas, ao me ver, pareceu um tanto surpreso, como se algo estivesse errado ali. O sorriso se desfez, ele baixou a cabeça, seus olhos saíram de foco, como se procurando algo perdido, e fez um gesto discreto à sua companheira, que se levantou e o acompanhou a um corredor nos fundos apressadamente.
            Fui até a mesa em que ele estava e sentei-me à sua espera. Passaram-se alguns minutos, depois dos quais o mesmo garçom se aproximou e me perguntou se desejava algo.
            - Não, ainda não, obrigado. Estou esperando um amigo, que saiu agora há pouco, deve ter ido ao closet, mas já vai voltar.
            - Mesmo? Ao closet?
            - Sim – eu disse, lançando um olhar à direção a que Victor tinha ido.
            - Perdão, senhor – ele falou -, mas naquela direção fica apenas a saída alternativa do restaurante; se alguém foi por ali, com certeza já pagou a conta.
            Fiquei desorientado quando o garçom disse isso... e só então me dei conta do erro que cometi: um erro vergonhoso. Olhando em volta, para as outras mesas, vi que todos os clientes estavam muito bem vestidos, com roupas perceptivelmente finas. Lembrando-me, então de como Victor estava quando cheguei, percebi que ele e a mulher também estavam com trajes elegantes. Olhei então para minha própria roupa e compreendi a razão pela qual meu amigo saiu tão depressa ao me ver: a camisa preta que eu usava não tinha marca conhecida e já estava um tanto desbotada, também não era a primeira vez que eu usava aqueles jeans e meus sapatos sociais, embora bem engraxados, não eram novos.
Levantei-me da cadeira e saí do restaurante.
Na manhã do dia seguinte recebi uma ligação de Victor, desculpando-se por ter saído tão depressa: “A Lu (era como se referia familiarmente à noiva) passou mal e tivemos que sair às pressas”.
- Tranquilo, - eu respondi, calmamente. – Mas, podemos marcar outro dia.
- Sim – ele falou rápido, aparentemente contente. – Quando?
- Podemos ir hoje ao *** (dei o nome do restaurante mais caro da cidade).
- Uau! Está se refinando, Flávio! Fechado! Hoje, então.
Desliguei o telefone e fui a uma loja de roupas pouco frequentada, devido aos preços exorbitantes de suas peças finas. Gastei quase todo o dinheiro – conquistado com meses de trabalho – em uma calça da ***. Porém, o destaque maior foi a camisa branca, de colarinho impecável e corte luxuoso na qual empreguei minhas últimas economias.
Às sete horas da noite eu cheguei ao restaurante. Desta vez, eu fui o primeiro; era possível que ele nem viesse depois do fiasco pelo qual eu o fiz passar... mas, quase meia-hora depois, ele chegou, trazendo Lúcia, a quem finalmente eu pude ver de perto, cara a cara. Ela era realmente muito bonita, de uma cor um tanto pálida, mas cheia de vida; tinha belos olhos castanhos e era muito expansiva e sorridente. Devia ter por volta de vinte anos. Ambos estavam vestidos no auge da elegância e, desta vez, Victor apressou-se em me dar um abraço e um aperto de mãos muito convidativos, seu semblante aprovando tudo ao redor.
Com um imenso sorriso, ele elogiou o restaurante, dizendo que era um dos lugares mais chiques que ele já havia visto neste fim de mundo. Eu ri e, olhando o cardápio, pedi um prato italiano muito gorduroso e colorido, uma espécie de massa condimentada com ervas finas. De relance, pude ver que ele lançou certo olhar de repulsa ao meu prato, enquanto bebericava sua taça de vinho branco. Perfeito. Então, deixando de lado os talheres de lado na mesa, ergui o prato até a altura do rosto de Victor e...
- O que você fez? – ele ficou extremamente assustado quando me viu emborcar o prato sobre a minha camisa branca, sujando-a toda de manchas vermelhas e amarelas. Lúcia desviou o rosto, sem saber se ria ou gritava de tão confusa.
- Para que este espanto, Victor? – eu disse, triunfante. – Eu não valho nada, meu amigo, minha presença aqui, diante de você nem é digna, já que eu mal tenho o que vestir. Você não acha justo que, se esta camisa é mais importante que eu, ela é que tenha a honra de entrar em contato com esta comida e jantar aqui? Pois bem, estou apenas alimentando este tecido inanimado, mas que tem muito mais valor que a minha pessoa!
Victor, evidentemente preocupado com os clientes vizinhos, que olhavam minha cena bizarra com expressões variadas do horror à curiosidade, ficou pálido e petrificado, como se atingido pelo olhar de Medusa. Todavia, não disse palavra. Aproveitei este momento para me retirar daquele lugar cujo ar era refinado demais para que eu o sorvesse. Levantei-me, atirei a carteira sobre a mesa e dei as costas a ele e à noiva:
- Tenha a fineza de pagar... e fique com o troco – falei, e lançando um olhar zombeteiro sobre a moça, completei: – A propósito, foi um prazer conhecê-la, Lu.

O som abafado das risadas dos clientes embalou minha saída pateticamente épica daquele antro de hipocrisia como uma trilha sonora orquestrada pelo destino. Suas notas sarcásticas me fizeram recordar que a superfície das pessoas, aquilo que as reveste socialmente, prevalece sobre qualquer valor abstrato... como a amizade.

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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Casa Nova

CASA NOVA

            O destino manipula as vidas como um gato brincalhão, que se diverte a embaraçar, desenrolar, atar e romper os frágeis novelos que lhe caem às mãos. Tive a comprovação disso quando vi o modo como meu desejo infantil máximo de independência se realizou, há bem pouco tempo.
            Desde criança, órfão de pai – um ébrio inveterado que faleceu pouco depois do meu nascimento –, eu fui duplamente mimado por minha mãe, uma vez que era filho único. Eu idealizava já, nessa fase dourada de ilusões efêmeras, o tempo em que teria minha própria casa, um emprego, uma esposa... Mas, principalmente, sonhava com os dias em que, todo orgulhoso, visitaria minha amável mãe em sua nova casa, pois éramos muito pobres naquele tempo. Contudo, eu sempre prometera a ela que lhe daria uma moradia digna quando crescesse, mesmo que isto significasse, na prática, uma simples reforma na nossa antiga casa. De fato, meus planos se realizaram, por assim dizer, de maneira totalmente inesperada.
            Eu cresci, não “como crescem as magnólias e os gatos”, mas cresci assim mesmo. Sob a proteção materna, porém realizando meus próprios esforços titânicos para aprender a ler e escrever, terminei a escola secundária e consegui um emprego medíocre – por vezes humilhante – na nossa cidadela subdesenvolvida. Não foi fácil juntar algum dinheiro, mas, após algumas privações, consegui uma estabilidade sofrível. O campo amoroso, entretanto, mantinha-se árido e seco para mim, o que, afinal, devia ser algo absolutamente compreensível: um sujeito casmurro, apático, sério em demasia... tais características não eram particularmente atraentes aos olhos femininos da região, ávidos por cifras, mais do que por índoles.
            A despeito disso, o tempo passou... pesada e lentamente.... E o que eu dissera sobre o destino cumpriu-se: consegui dar uma casa nova à minha mãe. Hoje, sou eu que vivo, sozinho, na nossa antiga casa. As portas, antes azuis,estão corroídas pelo efeito da umidade e as paredes encardidas revelam o reboco primitivo em diversas partes. Não me importo de morar sozinho; li em algum lugar que “o silêncio é um amigo que nunca trai”. Ademais, sempre que posso vou visitar minha mãe; ela sempre fora uma mulher de fibra, embora paciente e compreensiva. Merecia do filho uma morada honrada e eu não hesitei nem por um segundo em usar quase todo o meu dinheiro para que ela tivesse este direito confirmado.

            Ela sempre me recebe com uma alegria que não se expressa em palavras, mas que eu sinto por todos os meus poros e em cada terminação nervosa. De fato, eu só lamento que palavras já não sejam uma linguagem útil para nós agora... Ainda lembro do último beijo que dei nela, no meio da sua testa tranquila, antes de ela ir para a nova casa: foi instantes antes de fecharem a tampa do caixão e eu atirar uma rosa branca sobre ele, sentando-me, em seguida, ao lado do pequeno mausoléu e chorando amargamente pela sua partida tão prematura.

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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Kahmila Lockwood

Kahmila Lockwood

                A luz fraca e triste do crepúsculo começava a invadir a varanda estreita quando Peter abriu a porta e saiu; precisava tomar algum ar, ver o mundo externo, pois a conversa com Kahmila havia sido deveras tensa. Ele bateu a porta atrás de si e recostou-se num recanto encardido da varanda, com paredes descascadas. Levou as mãos à cabeça, na tentativa de aliviar a pressão emotiva por que passava e sentiu que seus olhos começavam a marejar; ele fora forte por tempo demais. Kahmila apareceu à porta, os olhos vermelhos e inchados, os cabelos castanhos longos e lisos agora caóticos. Correu até ele, soluçando e tentando abraçá-lo. A princípio, Peter fraquejou e deixou-se envolver nos braços macios dela... Contudo, logo recobrou a consciência e a repeliu, murmurando, sem encarar seus olhos:
            - Você sabe há quanto tempo estamos juntos?
            - Oito meses, eu acho – ela sussurrou, meio perplexa, ainda sem compreender a que ponto ele queria chegar.
            - Você acha? É este o valor que essa relação tem para você? – ele disparou, num jato, alto demais, pois se fosse pensar em cada palavra a ser dita, provavelmente não conseguiria.
            Kahmila o observava, receosa do rumo daquela conversa; ela se enganara ao achar que já haviam terminado a discussão.
            - Veja este lugar, Kahmila... – ele tentou se acalmar para construir argumentos mais persuasivos – veja essa cabana em que nós estamos! Veja estas paredes nojentas, veja a degradação a que chegamos! Isto não é vida! Por quanto tempo mais você deseja manter esta ilusão de eternidade e de final feliz? Isto parece ser feliz, para você?
            - As coisas vão melhorar, eu acho que nós... – ela desviava agora o olhar dele, parecia ter medo de, ao vê-lo, não acreditar em suas próprias palavras.
            - Vê? Você sempre “acha”! É inerte, não tem determinação! Não se pode construir uma vida baseada em achismos.
            Desta vez, Kahmila encontrou um vestígio de coragem para erguer os olhos e perguntar a ele, olhos nos olhos:
            - E o que você sugere que façamos, já que parece ser o senhor da verdade e da sabedoria?
            - Não suporto mais esta vida miserável, reclusa, feita só de meios momentos, sempre sob a sombra do medo e da frustração!
            - O que você sugere? – ela pergunta novamente, controlando-se para não chorar de novo, mas já temendo uma resposta.
            - Divórcio! – ele diz, à queima-roupa.
Ela fica pálida, zonza, parece sucumbir a uma dor excruciante. Cai de joelhos, implora para que ele não seja egoísta; ela o ama, mas sabe também que sua vida depende daquele casamento frustrado. Eles só podem ficar realmente satisfeitos poucas vezes por mês, mas ela não se importa. Ele também não se importava antes, mas viu que os rumos daquele relacionamento traziam uma bagagem de dores e sofrimentos maior que as compensações amorosas. Peter olha além dela, busca força para falar observando a chegada da noite, que traz seu manto negro crivado de estrelas, alertando que aquela conversa precisa ter um desfecho qualquer.
             - Não chore. Você sabe que, ao fim das contas, conhecermo-nos foi um grande erro; manter essa relação até agora foi uma temeridade absurda.
            - Eu te amo, e isso me dá força para viver assim para sempre, Peter.
            - Romanesco isto! – ele busca no sarcasmo uma maneira de encerrar a discussão. – Bom seria se em ações você fosse tão determinada quanto é nas palavras! Vamos, levante-se, não esteja aí a fazer este papel patético de mártir. Creia, para alguém da sua linhagem, isto não cai bem, de forma nenhuma!
            Ela levanta-se vagarosamente, como se, afinal, percebesse que aquela atitude não era mesmo digna de si.
            - Que faremos, então? – ela murmura, limpando seu vestido caro.
            - Sinceramente, eu já disse a única alternativa viável para nós: o único recurso que pode nos libertar de vergonhas maiores é o divórcio. Mas, com toda essa sua paixão arrebatadora, por que reluta?
            - O seu amor me alimenta, Peter, me faz crer que posso ser feliz...
            - Sim, - ele a interrompe, - o amor alimenta, mas o casamento dignifica, não é? Isto é o que qualquer moça da elite diria! Um divórcio a esta altura seria um golpe insuperável a alguém como você, Kahmila.
            A noite avançava lentamente, e os dois ali, na varanda ainda, separados por uma parede de silêncio intermitentemente quebrada por frases curtas. Peter cospe para fora, no quintal, e finalmente, reunindo toda a paciência que lhe resta, aproxima-se dela, que encara o céu, totalmente distraída.
            -Kahmila... Pense nisso durante a noite; amanhã você me dá seu veredito. Saiba apenas que nenhuma outra opção pode ser considerada.
            Ela não responde nada, nem o olha nos olhos mais uma vez. Parte para o meio da noite e desaparece entre as trevas. Ele pensa em ir atrás dela, mas reflete por um segundo e desiste. Decide esperar até que ela volte por conta própria; não quer pressioná-la naquele instante crucial.
            O dia amanhece nublado e opaco, Peter acorda com batidas persistentes na porta da frente; quando vai ver atender, vê um menino de mais ou menos 10 anos de idade, maltrapilho, que lhe entrega uma carta sem remetente. Ele abre a carteira, retira uma nota qualquer e entrega ao moleque, que sai correndo, como se temendo que o homem lhe tome o dinheiro que deu. Ao abrir o envelope, Peter encontra apenas uma curta mensagem, escrita às pressas, com letra trêmula: “Fiz uma grande besteira, Peter. Pensei em tudo que você me disse sobre divórcio e decidi abrir o jogo, finalmente. Agora eu temo por você. Saia daí agora!”.
            Peter ficou por alguns instantes sem entender a totalidade da mensagem, mas, alarmado, pegou o chapéu e o paletó puído e preparava-se para sair, quando ouviu baterem à porta de novo. Ele deixou que batessem até desistirem; era o procedimento que ele usava quando não queria atender ninguém. Mas, as batidas continuaram, cadenciadas e aparentemente pacientes. Peter exasperou-se com aquela persistência e abriu a porta. Sentiu grande alívio ao ver um senhor de idade avançada, quase completamente calvo, baixo e com ar bonachão, carregando uma pequena pasta.
            - Que deseja? – perguntou Peter, meio irritado.
            - Perdão, meu nome é Henry... Henry Lockwood – apresentou-se o homem, já abrindo sua pasta, -  e gostaria de saber se o senhor estaria interessado em...
            - Não, obrigado! – o outro disse, já querendo fechar a porta. Porém, algo o deixou petrificado, antes que ele pudesse esboçar qualquer reação. O homem tirou uma pistola da pequena pasta e mirou na testa do outro.
            - Meu jovem, eu gostaria de saber se o senhor estaria interessado em se juntar à minha doce esposa.

            Poucos segundos depois, o som compacto de uma pequena explosão se fez ouvir por alguns metros ao redor da casa.

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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Colar de Pérolas



COLAR DE PÉROLAS

I

Francis Jahn repuxou seus lábios finos num sorriso amargo, contemplando a cena à sua frente. “Mais uma que morre e esses idiotas não acharam nada ainda”. A cena que ele e seus companheiros de trabalho observavam era, de fato, brutal, mas já rotineira há algum tempo, desde que Ibrahim Felix, que, mais tarde seria celebrizado com a alcunha de Ali Babá, por ter assassinado 40 mulheres em pouco mais de dois meses, começou seus crimes ali, em plena cidade de ...
Naquele sujo e decrépito quarto de bordel, sentada e amarrada a uma cadeira de madeira ordinária – como tudo naquele antro – jazia o corpo nu de uma mulher. O cadáver, como todos os outros, que seriam encontrados a partir de então, tinha um horrível hematoma em torno do pescoço, o que indicava que fora vítima de fortíssima compressão naquela região, agravada pela asfixia que o levou à morte.  Contudo, o que era mais perturbador na cena, e que deixava os policiais ainda mais irritados, era o fato de o assassino transformar todas as suas vítimas em “ampulhetas humanas”, com a finalidade de zombar das autoridades, que sempre chegavam tarde demais no local dos crimes. A mulher tinha ambos os pulsos cortados longitudinalmente, das mãos até os cotovelos, o que fazia com que o sangue jorrasse aos borbotões e fosse conduzido por estruturas metálicas côncavas até um recipiente de vidro semelhante a um número 8: largo em cima e embaixo, mas estreito no meio, bem à maneira de uma ampulheta, que ficava imediatamente abaixo da cadeira onde o cadáver estava.
Àquela hora, três e meia da manhã, como Jahn constatou no relógio amarelo da parede, o sangue não escorria mais, e a vítima já estava morta há pelo menos cinco horas. Acendendo um cigarro, Jahn aproximou-se do cadáver e não pôde deixar de esboçar um outro sorriso amarelo ao olhar fixamente para os seios da mulher inerte.
_ Um colar de pérolas! – sussurrou, de si para si, mas o capitão Mathew, famoso por sua audição sobrenatural, o ouviu. Corria, entre os policiais a anedota de que Mathew era capaz de ouvir o farfalhar de uma folha a um quilômetro de distância.
_ Como disse, Jahn? – perguntou o capitão, fitando nele os seus olhos escuros e fundos, sem nenhum vestígio de humor.
_ Nada – respondeu Jahn, refletindo sobre certos pensamentos pessoais.
Enquanto a perícia examinava a cena do crime, Francis Jahn saiu do quarto a passos lentos, esboçando um novo sorriso.

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sábado, 16 de março de 2013

O Sorriso de Louise


O Sorriso de Louise

            Eu sempre amei Louise, é verdade. Quando nos casamos, ah! Lembro como se fosse ontem (e lá se vão bons nove anos), estávamos apaixonados deveras. O que mais me fascinava na minha bela e jovem esposa, de 19 anos, era seu sorriso encantador. Ela gostava de rir, mostrando dentes muito alvos; mais que isso, era aquele sorriso que envolvia toda a face, contagiando a todos.
            Pois bem, por acaso do destino, foi justamente o belo sorriso de Louise que começou a me causar alguns transtornos. Quinze dias depois do nosso matrimônio, nós brigamos. O motivo? Notei que Louise ria demais, exibia seus belos dentes com frequência. Todos me diziam que ela era por demais simpática; jamais fechou a cara a ninguém, regalava-se de servir ao próximo. Ora, isto era motivo de certo orgulho no início, mas depois começou a me deixar azedo. Morávamos, nesse tempo numa rua movimentada da cidade, e me parecia que todos sorriam para minha esposa, e ela sempre correspondia, não apenas daquela forma peculiar, mas também acenando ou cumprimentando. Enfim, já sem suportar tamanha expansão de alegria, discuti com ela.
            Na verdade, não foi uma briga, porque não houve reciprocidade: eu berrava que ela se desse ao respeito, se preservasse, não falasse com estranhos, e ela... bom, é estranho dizer isso, mas ela só ouvia, calada, chorando – não sei se de vergonha ou medo.  Minha ira não se aplacou; tomei-lhe os pulsos violentamente, olhei no fundo dos seus olhos (lindos olhos pretos!) e, enfim, tive uma ideia. No dia seguinte, nos mudávamos para uma casa de campo, propriedade de meus falecidos pais, que a deixaram a meu irmão, por achar que eu era incapaz e beberrão. Acrescenta-se que eu era o primogênito, e meu irmão, nove anos mais novo. Não precisei pedir permissão a ele para ir lá, tomar conta do que deveria ter sido meu por direito porque meu irmão estava sumido há quase um ano. Nunca mais havia dado notícias. E depois, eu é que sou o irresponsável?
            O fato é que ali, sem o assédio da multidão, podíamos levar uma vida sossegada, finalmente. Louise não gostou do lugar isolado, pude perceber, mas não reclamou. Ela estava imóvel, não sei por quê. A casa para onde fomos era imensa, construída quase que inteiramente de madeira nobre, com um assoalho avermelhado. Levei Louise nos braços – cavalheirismo! – da porta da frente, esbranquiçada e antiga, até o nosso quarto, que ficava no final de um grande corredor todo empoeirado, cheirando a mofo. Conforme eu disse, a casa estava abandonada há quase um ano; nada mais natural do que estar naquelas condições. Crescia mato ao redor, quase eclipsando a entrada e as janelas. Mas, isso era irrelevante; ali eu seria feliz com Louise, como Adão e Eva no Paraíso!
            À tarde do mesmo dia, encontrei Louise deitada na cama, na mesma posição em que a deixara de manhã, depois de me satisfazer de suas carícias e de atos de amor selvagem, bem de acordo com o lugar. Tomei sua cabeça nas mãos e a admirei, fascinado. De olhos semicerrados, ela era, de fato, encantadora. E, por mais de nove anos, estivemos ali, vivendo felizes. Eu, pelo menos, estava plenamente satisfeito daquele viver isolado, no campo, escondido com minha esposa no meio do nosso paraíso particular, longe dos olhos invejosos do resto do mundo.
            Ainda hoje somos um casal inseparável. Louise sorri como nunca agora. Pudera; a morte lhe caiu de forma sublime, acentuando sua beleza angelical. É verdade... houve um contratempo antes de nossa vinda para esta casa de campo. Quando eu tomei-lhe os pulsos na hora daquela terrível, porém indispensável, discussão, ela desviou o rosto, chorando, e tentou se desvencilhar. Meio confuso, eu a soltei; entretanto, mudei de ideia. Ela correu, desesperada, para nosso quarto, mas eu a alcancei quando ela ainda atravessava a porta. Peguei seu pescoço por trás e apertei-o com uma pressão desumana; depois, muito deliberadamente e já um pouco mais calmo, bati a cabeça dela com força contra uma quina da parede, do lado de dentro do quarto.  A testa dela se abriu num canto, do lado direito, e ela tombou perto da cama, sangrando. Depois, vieram fortes convulsões, a que eu assisti, admirado, até que ela expirou e, céus!, ainda esboçava um sorriso!
            Não foi difícil limpar a bagunça e colocar o belo corpo dela numa grande mala de viagem; tive que quebrar-lhe as pernas para que ela coubesse ali, meio dobrada, mas isto foi tarefa simples. Então, na manhã do dia seguinte, parti para a casa de campo. Ao chegar, livrei-me da mala, retirando Louise dela e enchendo-a de pedras, atirando-a em seguida  no rio que ficava atrás da casa. O mesmo rio em que afoguei meu irmão mais novo alguns meses antes, por causa daquelas terras. Sepultei-o entre as árvores ali mesmo e ninguém jamais soube do caso.
Então, tomei minha esposa ensanguentada nos braços e levei-a para nosso novo ninho de amor eterno. Estivemos lá por esses anos todos. O tempo conservou a beleza da minha mulher. Embora a decomposição do corpo tenha tirado algumas de suas graças naturais, conservou e acentuou outras, como seu magnífico sorriso. Sua pele corrompeu-se e retesou os músculos da face, exibindo para sempre seu derradeiro sorriso. Gosto imensamente de pensar assim: o último sorriso de Louise será apenas meu... para sempre.

            

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