Amigo
Amigo
- Vamos nos casar!
- Parabéns, Victor!
Fico feliz por você, amigo!
- Lúcia é tudo que eu
procurava em uma mulher, Flávio! Quando você conhecê-la, sempre tão gentil e
inteligente, além de linda, claro, saberá por que tenho tanta pressa em
desposá-la... e por que marquei o casamento para abril!
- Abril? Mas, está
muito próximo! Já estamos no fim de janeiro.
-E eu ainda acho que
é muito tempo! Quero casar com ela, ter dois filhos, um cachorro e uma casa de
frente para o mar, em alguma praia do nordeste! E você, meu caro amigo, será o
padrinho!
-É muita honra,
Victor. – eu argumentei, rindo da espontaneidade com que ele fazia seus planos
- Por mais que eu me sinta lisonjeado, sinto que talvez não seja digno o
suficiente para uma ocasião tão especial.
- Bobagem! Você é meu
melhor amigo, Flávio; ninguém mais pode ocupar o cargo de padrinho do meu
casamento além de você... a não ser que não queira;
aí é outra história...
- Claro que eu quero
– eu disse, precipitadamente, antes mesmo que ele terminasse a frase.
- Que bom, então –
ele falou, muito satisfeito, e depois, lembrando-se de algo importante,
completou – Ah, outra coisa: hoje à noite vamos jantar naquele restaurante novo
que abriu na Rua..., conhece? É uma boa oportunidade para você conhecer a Lúcia
e dizer se eu tenho ou não razão de desejá-la tanto!
Respondi-lhe
que não sabia onde ficava este restaurante, ele passou-me o endereço e
despediu-se, dizendo que nos encontraríamos logo mais, à noite lá. Eram duas
horas da tarde quando Victor foi embora; fazia mais de três anos que eu não o
via. Crescemos juntos, éramos amigos de infância, confidentes das travessuras
de criança aos desabafos por desilusões ou sucessos amorosos da adolescência.
Nossas casas eram na mesma rua e só nos separamos quando terminamos o ensino
médio; eu permaneci na mesma cidadela, já que era muito simplório, não possuía
grandes planos para o futuro, mas Victor era sonhador, tinha espírito um tanto
aristocrático, meio orgulhoso, dizia-me sempre que não queria “morrer naquele
pardieiro”. Foi para o sul do país e, com a ajuda de parentes comerciantes que
possuía por lá, fez alguma fortuna e, obviamente, começou a construir seu
futuro promissor. Foi lá que conheceu Lúcia, por quem se enamorou. Tudo isso
ocorreu durante o intervalo dos três anos em que estivemos separados. Depois
desse tempo, ele anunciou que retornaria à terra natal por uma temporada, para
mostrá-la à sua noiva e matar as saudades de sua gente.
Grandes
foram o espanto e alegria que senti quando ele comunicou-me sua volta, ainda
que provisória, à nossa cidade. Na verdade, parte dessa surpresa deve-se ao
período em que estivemos sem nos falar, uma vez que depois de sair da cidade
ele não tenha tido tempo para estabelecer contato comigo. Então, alegre por seu
retorno, abri o guarda-roupa, peguei minhas melhores vestimentas e escolhi a
que mais se adequaria à situação. Assim que deu o horário marcado, dirigi-me ao
restaurante designado.
Logo
ao chegar, ainda do lado de fora do estabelecimento, vi meu amigo sentado a uma
mesa, de frente para a porta, embora mais ou menos no centro do restaurante. A
pessoa que o acompanhava estava de costas para a porta, bem à frente dele. Era
a noiva dele, com certeza; tinha cabelos longos, lisos, pretos e vestia uma
blusa lilás com listras pretas. O rosto eu não pude ver, mas, pela forma como
agitava os ombros, era claro que estava achando graça em algum ditério do meu
amigo, que finalmente me enxergou, enquanto eu cumprimentava o garçom que me
abordou assim que transpus a entrada. Victor estava sorrindo amplamente, mas,
ao me ver, pareceu um tanto surpreso, como se algo estivesse errado ali. O
sorriso se desfez, ele baixou a cabeça, seus olhos saíram de foco, como se
procurando algo perdido, e fez um gesto discreto à sua companheira, que se
levantou e o acompanhou a um corredor nos fundos apressadamente.
Fui
até a mesa em que ele estava e sentei-me à sua espera. Passaram-se alguns
minutos, depois dos quais o mesmo garçom se aproximou e me perguntou se
desejava algo.
-
Não, ainda não, obrigado. Estou esperando um amigo, que saiu agora há pouco,
deve ter ido ao closet, mas já vai voltar.
-
Mesmo? Ao closet?
-
Sim – eu disse, lançando um olhar à direção a que Victor tinha ido.
-
Perdão, senhor – ele falou -, mas naquela direção fica apenas a saída
alternativa do restaurante; se alguém foi por ali, com certeza já pagou a
conta.
Fiquei
desorientado quando o garçom disse isso... e só então me dei conta do erro que
cometi: um erro vergonhoso. Olhando em volta, para as outras mesas, vi que
todos os clientes estavam muito bem vestidos, com roupas perceptivelmente
finas. Lembrando-me, então de como Victor estava quando cheguei, percebi que
ele e a mulher também estavam com trajes elegantes. Olhei então para minha
própria roupa e compreendi a razão pela qual meu amigo saiu tão depressa ao me
ver: a camisa preta que eu usava não tinha marca conhecida e já estava um tanto
desbotada, também não era a primeira vez que eu usava aqueles jeans e meus
sapatos sociais, embora bem engraxados, não eram novos.
Levantei-me da
cadeira e saí do restaurante.
Na manhã do dia
seguinte recebi uma ligação de Victor, desculpando-se por ter saído tão
depressa: “A Lu (era como se referia familiarmente à noiva) passou mal e
tivemos que sair às pressas”.
- Tranquilo, - eu
respondi, calmamente. – Mas, podemos marcar outro dia.
- Sim – ele falou
rápido, aparentemente contente. – Quando?
- Podemos ir hoje ao
*** (dei o nome do restaurante mais caro da cidade).
- Uau! Está se
refinando, Flávio! Fechado! Hoje, então.
Desliguei o telefone
e fui a uma loja de roupas pouco frequentada, devido aos preços exorbitantes de
suas peças finas. Gastei quase todo o dinheiro – conquistado com meses de
trabalho – em uma calça da ***. Porém, o destaque maior foi a camisa branca, de
colarinho impecável e corte luxuoso na qual empreguei minhas últimas economias.
Às sete horas da
noite eu cheguei ao restaurante. Desta vez, eu fui o primeiro; era possível que
ele nem viesse depois do fiasco pelo
qual eu o fiz passar... mas, quase meia-hora depois, ele chegou, trazendo
Lúcia, a quem finalmente eu pude ver de perto, cara a cara. Ela era realmente
muito bonita, de uma cor um tanto pálida, mas cheia de vida; tinha belos olhos
castanhos e era muito expansiva e sorridente. Devia ter por volta de vinte
anos. Ambos estavam vestidos no auge da elegância e, desta vez, Victor
apressou-se em me dar um abraço e um aperto de mãos muito convidativos, seu
semblante aprovando tudo ao redor.
Com um imenso
sorriso, ele elogiou o restaurante, dizendo que era um dos lugares mais chiques
que ele já havia visto neste fim de mundo.
Eu ri e, olhando o cardápio, pedi um prato italiano muito gorduroso e colorido,
uma espécie de massa condimentada com ervas finas. De relance, pude ver que ele
lançou certo olhar de repulsa ao meu prato, enquanto bebericava sua taça de
vinho branco. Perfeito. Então, deixando de lado os talheres de lado na mesa,
ergui o prato até a altura do rosto de Victor e...
- O que você fez? –
ele ficou extremamente assustado quando me viu emborcar o prato sobre a minha camisa branca, sujando-a toda de
manchas vermelhas e amarelas. Lúcia desviou o rosto, sem saber se ria ou
gritava de tão confusa.
- Para que este
espanto, Victor? – eu disse, triunfante. – Eu não valho nada, meu amigo, minha presença aqui, diante de
você nem é digna, já que eu mal tenho o que vestir. Você não acha justo que, se
esta camisa é mais importante que eu, ela
é que tenha a honra de entrar em contato com esta comida e jantar aqui? Pois
bem, estou apenas alimentando este tecido inanimado, mas que tem muito mais
valor que a minha pessoa!
Victor, evidentemente
preocupado com os clientes vizinhos, que olhavam minha cena bizarra com
expressões variadas do horror à curiosidade, ficou pálido e petrificado, como
se atingido pelo olhar de Medusa. Todavia, não disse palavra. Aproveitei este
momento para me retirar daquele lugar cujo ar era refinado demais para que eu o
sorvesse. Levantei-me, atirei a carteira sobre a mesa e dei as costas a ele e à
noiva:
- Tenha a fineza de
pagar... e fique com o troco – falei, e lançando um olhar zombeteiro sobre a
moça, completei: – A propósito, foi um prazer conhecê-la, Lu.
O som abafado das risadas
dos clientes embalou minha saída pateticamente épica daquele antro de
hipocrisia como uma trilha sonora orquestrada pelo destino. Suas notas
sarcásticas me fizeram recordar que a superfície das pessoas, aquilo que as
reveste socialmente, prevalece sobre qualquer valor abstrato... como a amizade.
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