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sábado, 9 de novembro de 2013

Amigo

Amigo

- Vamos nos casar!
- Parabéns, Victor! Fico feliz por você, amigo!
- Lúcia é tudo que eu procurava em uma mulher, Flávio! Quando você conhecê-la, sempre tão gentil e inteligente, além de linda, claro, saberá por que tenho tanta pressa em desposá-la... e por que marquei o casamento para abril!
- Abril? Mas, está muito próximo! Já estamos no fim de janeiro.
-E eu ainda acho que é muito tempo! Quero casar com ela, ter dois filhos, um cachorro e uma casa de frente para o mar, em alguma praia do nordeste! E você, meu caro amigo, será o padrinho!
-É muita honra, Victor. – eu argumentei, rindo da espontaneidade com que ele fazia seus planos - Por mais que eu me sinta lisonjeado, sinto que talvez não seja digno o suficiente para uma ocasião tão especial.
- Bobagem! Você é meu melhor amigo, Flávio; ninguém mais pode ocupar o cargo de padrinho do meu casamento além de você... a não ser que não queira; aí é outra história...
- Claro que eu quero – eu disse, precipitadamente, antes mesmo que ele terminasse a frase.
- Que bom, então – ele falou, muito satisfeito, e depois, lembrando-se de algo importante, completou – Ah, outra coisa: hoje à noite vamos jantar naquele restaurante novo que abriu na Rua..., conhece? É uma boa oportunidade para você conhecer a Lúcia e dizer se eu tenho ou não razão de desejá-la tanto!
            Respondi-lhe que não sabia onde ficava este restaurante, ele passou-me o endereço e despediu-se, dizendo que nos encontraríamos logo mais, à noite lá. Eram duas horas da tarde quando Victor foi embora; fazia mais de três anos que eu não o via. Crescemos juntos, éramos amigos de infância, confidentes das travessuras de criança aos desabafos por desilusões ou sucessos amorosos da adolescência. Nossas casas eram na mesma rua e só nos separamos quando terminamos o ensino médio; eu permaneci na mesma cidadela, já que era muito simplório, não possuía grandes planos para o futuro, mas Victor era sonhador, tinha espírito um tanto aristocrático, meio orgulhoso, dizia-me sempre que não queria “morrer naquele pardieiro”. Foi para o sul do país e, com a ajuda de parentes comerciantes que possuía por lá, fez alguma fortuna e, obviamente, começou a construir seu futuro promissor. Foi lá que conheceu Lúcia, por quem se enamorou. Tudo isso ocorreu durante o intervalo dos três anos em que estivemos separados. Depois desse tempo, ele anunciou que retornaria à terra natal por uma temporada, para mostrá-la à sua noiva e matar as saudades de sua gente.
            Grandes foram o espanto e alegria que senti quando ele comunicou-me sua volta, ainda que provisória, à nossa cidade. Na verdade, parte dessa surpresa deve-se ao período em que estivemos sem nos falar, uma vez que depois de sair da cidade ele não tenha tido tempo para estabelecer contato comigo. Então, alegre por seu retorno, abri o guarda-roupa, peguei minhas melhores vestimentas e escolhi a que mais se adequaria à situação. Assim que deu o horário marcado, dirigi-me ao restaurante designado.
            Logo ao chegar, ainda do lado de fora do estabelecimento, vi meu amigo sentado a uma mesa, de frente para a porta, embora mais ou menos no centro do restaurante. A pessoa que o acompanhava estava de costas para a porta, bem à frente dele. Era a noiva dele, com certeza; tinha cabelos longos, lisos, pretos e vestia uma blusa lilás com listras pretas. O rosto eu não pude ver, mas, pela forma como agitava os ombros, era claro que estava achando graça em algum ditério do meu amigo, que finalmente me enxergou, enquanto eu cumprimentava o garçom que me abordou assim que transpus a entrada. Victor estava sorrindo amplamente, mas, ao me ver, pareceu um tanto surpreso, como se algo estivesse errado ali. O sorriso se desfez, ele baixou a cabeça, seus olhos saíram de foco, como se procurando algo perdido, e fez um gesto discreto à sua companheira, que se levantou e o acompanhou a um corredor nos fundos apressadamente.
            Fui até a mesa em que ele estava e sentei-me à sua espera. Passaram-se alguns minutos, depois dos quais o mesmo garçom se aproximou e me perguntou se desejava algo.
            - Não, ainda não, obrigado. Estou esperando um amigo, que saiu agora há pouco, deve ter ido ao closet, mas já vai voltar.
            - Mesmo? Ao closet?
            - Sim – eu disse, lançando um olhar à direção a que Victor tinha ido.
            - Perdão, senhor – ele falou -, mas naquela direção fica apenas a saída alternativa do restaurante; se alguém foi por ali, com certeza já pagou a conta.
            Fiquei desorientado quando o garçom disse isso... e só então me dei conta do erro que cometi: um erro vergonhoso. Olhando em volta, para as outras mesas, vi que todos os clientes estavam muito bem vestidos, com roupas perceptivelmente finas. Lembrando-me, então de como Victor estava quando cheguei, percebi que ele e a mulher também estavam com trajes elegantes. Olhei então para minha própria roupa e compreendi a razão pela qual meu amigo saiu tão depressa ao me ver: a camisa preta que eu usava não tinha marca conhecida e já estava um tanto desbotada, também não era a primeira vez que eu usava aqueles jeans e meus sapatos sociais, embora bem engraxados, não eram novos.
Levantei-me da cadeira e saí do restaurante.
Na manhã do dia seguinte recebi uma ligação de Victor, desculpando-se por ter saído tão depressa: “A Lu (era como se referia familiarmente à noiva) passou mal e tivemos que sair às pressas”.
- Tranquilo, - eu respondi, calmamente. – Mas, podemos marcar outro dia.
- Sim – ele falou rápido, aparentemente contente. – Quando?
- Podemos ir hoje ao *** (dei o nome do restaurante mais caro da cidade).
- Uau! Está se refinando, Flávio! Fechado! Hoje, então.
Desliguei o telefone e fui a uma loja de roupas pouco frequentada, devido aos preços exorbitantes de suas peças finas. Gastei quase todo o dinheiro – conquistado com meses de trabalho – em uma calça da ***. Porém, o destaque maior foi a camisa branca, de colarinho impecável e corte luxuoso na qual empreguei minhas últimas economias.
Às sete horas da noite eu cheguei ao restaurante. Desta vez, eu fui o primeiro; era possível que ele nem viesse depois do fiasco pelo qual eu o fiz passar... mas, quase meia-hora depois, ele chegou, trazendo Lúcia, a quem finalmente eu pude ver de perto, cara a cara. Ela era realmente muito bonita, de uma cor um tanto pálida, mas cheia de vida; tinha belos olhos castanhos e era muito expansiva e sorridente. Devia ter por volta de vinte anos. Ambos estavam vestidos no auge da elegância e, desta vez, Victor apressou-se em me dar um abraço e um aperto de mãos muito convidativos, seu semblante aprovando tudo ao redor.
Com um imenso sorriso, ele elogiou o restaurante, dizendo que era um dos lugares mais chiques que ele já havia visto neste fim de mundo. Eu ri e, olhando o cardápio, pedi um prato italiano muito gorduroso e colorido, uma espécie de massa condimentada com ervas finas. De relance, pude ver que ele lançou certo olhar de repulsa ao meu prato, enquanto bebericava sua taça de vinho branco. Perfeito. Então, deixando de lado os talheres de lado na mesa, ergui o prato até a altura do rosto de Victor e...
- O que você fez? – ele ficou extremamente assustado quando me viu emborcar o prato sobre a minha camisa branca, sujando-a toda de manchas vermelhas e amarelas. Lúcia desviou o rosto, sem saber se ria ou gritava de tão confusa.
- Para que este espanto, Victor? – eu disse, triunfante. – Eu não valho nada, meu amigo, minha presença aqui, diante de você nem é digna, já que eu mal tenho o que vestir. Você não acha justo que, se esta camisa é mais importante que eu, ela é que tenha a honra de entrar em contato com esta comida e jantar aqui? Pois bem, estou apenas alimentando este tecido inanimado, mas que tem muito mais valor que a minha pessoa!
Victor, evidentemente preocupado com os clientes vizinhos, que olhavam minha cena bizarra com expressões variadas do horror à curiosidade, ficou pálido e petrificado, como se atingido pelo olhar de Medusa. Todavia, não disse palavra. Aproveitei este momento para me retirar daquele lugar cujo ar era refinado demais para que eu o sorvesse. Levantei-me, atirei a carteira sobre a mesa e dei as costas a ele e à noiva:
- Tenha a fineza de pagar... e fique com o troco – falei, e lançando um olhar zombeteiro sobre a moça, completei: – A propósito, foi um prazer conhecê-la, Lu.

O som abafado das risadas dos clientes embalou minha saída pateticamente épica daquele antro de hipocrisia como uma trilha sonora orquestrada pelo destino. Suas notas sarcásticas me fizeram recordar que a superfície das pessoas, aquilo que as reveste socialmente, prevalece sobre qualquer valor abstrato... como a amizade.

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