Kahmila Lockwood
Kahmila
Lockwood
A
luz fraca e triste do crepúsculo começava a invadir a varanda estreita quando
Peter abriu a porta e saiu; precisava tomar algum ar, ver o mundo externo, pois
a conversa com Kahmila havia sido deveras tensa. Ele bateu a porta atrás de si
e recostou-se num recanto encardido da varanda, com paredes descascadas. Levou as
mãos à cabeça, na tentativa de aliviar a pressão emotiva por que passava e
sentiu que seus olhos começavam a marejar; ele fora forte por tempo demais. Kahmila
apareceu à porta, os olhos vermelhos e inchados, os cabelos castanhos longos e
lisos agora caóticos. Correu até ele, soluçando e tentando abraçá-lo. A princípio,
Peter fraquejou e deixou-se envolver nos braços macios dela... Contudo, logo
recobrou a consciência e a repeliu, murmurando, sem encarar seus olhos:
-
Você sabe há quanto tempo estamos juntos?
-
Oito meses, eu acho – ela sussurrou, meio perplexa, ainda sem compreender a que
ponto ele queria chegar.
-
Você acha? É este o valor que essa
relação tem para você? – ele disparou, num jato, alto demais, pois se fosse
pensar em cada palavra a ser dita, provavelmente não conseguiria.
Kahmila
o observava, receosa do rumo daquela conversa; ela se enganara ao achar que já
haviam terminado a discussão.
-
Veja este lugar, Kahmila... – ele tentou se acalmar para construir argumentos
mais persuasivos – veja essa cabana em que nós estamos! Veja estas paredes
nojentas, veja a degradação a que chegamos! Isto não é vida! Por quanto tempo
mais você deseja manter esta ilusão de eternidade e de final feliz? Isto parece
ser feliz, para você?
-
As coisas vão melhorar, eu acho que nós... – ela desviava agora o olhar dele,
parecia ter medo de, ao vê-lo, não acreditar em suas próprias palavras.
-
Vê? Você sempre “acha”! É inerte, não
tem determinação! Não se pode construir uma vida baseada em achismos.
Desta
vez, Kahmila encontrou um vestígio de coragem para erguer os olhos e perguntar
a ele, olhos nos olhos:
-
E o que você sugere que façamos, já que parece ser o senhor da verdade e da
sabedoria?
-
Não suporto mais esta vida miserável, reclusa, feita só de meios momentos,
sempre sob a sombra do medo e da frustração!
-
O que você sugere? – ela pergunta novamente, controlando-se para não chorar de
novo, mas já temendo uma resposta.
-
Divórcio! – ele diz, à queima-roupa.
Ela fica pálida, zonza, parece
sucumbir a uma dor excruciante. Cai de joelhos, implora para que ele não seja
egoísta; ela o ama, mas sabe também que sua vida depende daquele casamento
frustrado. Eles só podem ficar realmente satisfeitos poucas vezes por mês, mas
ela não se importa. Ele também não se importava antes, mas viu que os rumos
daquele relacionamento traziam uma bagagem de dores e sofrimentos maior que as
compensações amorosas. Peter olha além dela, busca força para falar observando
a chegada da noite, que traz seu manto negro crivado de estrelas, alertando que
aquela conversa precisa ter um desfecho qualquer.
- Não chore. Você sabe que, ao fim das contas,
conhecermo-nos foi um grande erro; manter essa relação até agora foi uma temeridade
absurda.
-
Eu te amo, e isso me dá força para viver assim para sempre, Peter.
-
Romanesco isto! – ele busca no sarcasmo uma maneira de encerrar a discussão. –
Bom seria se em ações você fosse tão determinada quanto é nas palavras! Vamos,
levante-se, não esteja aí a fazer este papel patético de mártir. Creia, para
alguém da sua linhagem, isto não cai
bem, de forma nenhuma!
Ela
levanta-se vagarosamente, como se, afinal, percebesse que aquela atitude não
era mesmo digna de si.
-
Que faremos, então? – ela murmura, limpando seu vestido caro.
-
Sinceramente, eu já disse a única alternativa viável para nós: o único recurso
que pode nos libertar de vergonhas maiores é o divórcio. Mas, com toda essa sua
paixão arrebatadora, por que reluta?
-
O seu amor me alimenta, Peter, me faz crer que posso ser feliz...
-
Sim, - ele a interrompe, - o amor alimenta, mas o casamento dignifica, não é? Isto é o que qualquer
moça da elite diria! Um divórcio a esta altura seria um golpe insuperável a
alguém como você, Kahmila.
A
noite avançava lentamente, e os dois ali, na varanda ainda, separados por uma
parede de silêncio intermitentemente quebrada por frases curtas. Peter cospe
para fora, no quintal, e finalmente, reunindo toda a paciência que lhe resta,
aproxima-se dela, que encara o céu, totalmente distraída.
-Kahmila...
Pense nisso durante a noite; amanhã você me dá seu veredito. Saiba apenas que
nenhuma outra opção pode ser considerada.
Ela
não responde nada, nem o olha nos olhos mais uma vez. Parte para o meio da
noite e desaparece entre as trevas. Ele pensa em ir atrás dela, mas reflete por
um segundo e desiste. Decide esperar até que ela volte por conta própria; não
quer pressioná-la naquele instante crucial.
O
dia amanhece nublado e opaco, Peter acorda com batidas persistentes na porta da
frente; quando vai ver atender, vê um menino de mais ou menos 10 anos de idade,
maltrapilho, que lhe entrega uma carta sem remetente. Ele abre a carteira,
retira uma nota qualquer e entrega ao moleque, que sai correndo, como se
temendo que o homem lhe tome o dinheiro que deu. Ao abrir o envelope, Peter encontra
apenas uma curta mensagem, escrita às pressas, com letra trêmula: “Fiz uma
grande besteira, Peter. Pensei em tudo que você me disse sobre divórcio e decidi
abrir o jogo, finalmente. Agora eu temo por você. Saia daí agora!”.
Peter
ficou por alguns instantes sem entender a totalidade da mensagem, mas,
alarmado, pegou o chapéu e o paletó puído e preparava-se para sair, quando
ouviu baterem à porta de novo. Ele deixou que batessem até desistirem; era o
procedimento que ele usava quando não queria atender ninguém. Mas, as batidas
continuaram, cadenciadas e aparentemente pacientes. Peter exasperou-se com
aquela persistência e abriu a porta. Sentiu grande alívio ao ver um senhor de
idade avançada, quase completamente calvo, baixo e com ar bonachão, carregando
uma pequena pasta.
-
Que deseja? – perguntou Peter, meio irritado.
-
Perdão, meu nome é Henry... Henry Lockwood – apresentou-se o homem, já abrindo
sua pasta, - e gostaria de saber se o
senhor estaria interessado em...
-
Não, obrigado! – o outro disse, já querendo fechar a porta. Porém, algo o
deixou petrificado, antes que ele pudesse esboçar qualquer reação. O homem
tirou uma pistola da pequena pasta e mirou na testa do outro.
-
Meu jovem, eu gostaria de saber se o senhor estaria interessado em se juntar à
minha doce esposa.
Poucos
segundos depois, o som compacto de uma pequena explosão se fez ouvir por alguns
metros ao redor da casa.
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