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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Kahmila Lockwood

Kahmila Lockwood

                A luz fraca e triste do crepúsculo começava a invadir a varanda estreita quando Peter abriu a porta e saiu; precisava tomar algum ar, ver o mundo externo, pois a conversa com Kahmila havia sido deveras tensa. Ele bateu a porta atrás de si e recostou-se num recanto encardido da varanda, com paredes descascadas. Levou as mãos à cabeça, na tentativa de aliviar a pressão emotiva por que passava e sentiu que seus olhos começavam a marejar; ele fora forte por tempo demais. Kahmila apareceu à porta, os olhos vermelhos e inchados, os cabelos castanhos longos e lisos agora caóticos. Correu até ele, soluçando e tentando abraçá-lo. A princípio, Peter fraquejou e deixou-se envolver nos braços macios dela... Contudo, logo recobrou a consciência e a repeliu, murmurando, sem encarar seus olhos:
            - Você sabe há quanto tempo estamos juntos?
            - Oito meses, eu acho – ela sussurrou, meio perplexa, ainda sem compreender a que ponto ele queria chegar.
            - Você acha? É este o valor que essa relação tem para você? – ele disparou, num jato, alto demais, pois se fosse pensar em cada palavra a ser dita, provavelmente não conseguiria.
            Kahmila o observava, receosa do rumo daquela conversa; ela se enganara ao achar que já haviam terminado a discussão.
            - Veja este lugar, Kahmila... – ele tentou se acalmar para construir argumentos mais persuasivos – veja essa cabana em que nós estamos! Veja estas paredes nojentas, veja a degradação a que chegamos! Isto não é vida! Por quanto tempo mais você deseja manter esta ilusão de eternidade e de final feliz? Isto parece ser feliz, para você?
            - As coisas vão melhorar, eu acho que nós... – ela desviava agora o olhar dele, parecia ter medo de, ao vê-lo, não acreditar em suas próprias palavras.
            - Vê? Você sempre “acha”! É inerte, não tem determinação! Não se pode construir uma vida baseada em achismos.
            Desta vez, Kahmila encontrou um vestígio de coragem para erguer os olhos e perguntar a ele, olhos nos olhos:
            - E o que você sugere que façamos, já que parece ser o senhor da verdade e da sabedoria?
            - Não suporto mais esta vida miserável, reclusa, feita só de meios momentos, sempre sob a sombra do medo e da frustração!
            - O que você sugere? – ela pergunta novamente, controlando-se para não chorar de novo, mas já temendo uma resposta.
            - Divórcio! – ele diz, à queima-roupa.
Ela fica pálida, zonza, parece sucumbir a uma dor excruciante. Cai de joelhos, implora para que ele não seja egoísta; ela o ama, mas sabe também que sua vida depende daquele casamento frustrado. Eles só podem ficar realmente satisfeitos poucas vezes por mês, mas ela não se importa. Ele também não se importava antes, mas viu que os rumos daquele relacionamento traziam uma bagagem de dores e sofrimentos maior que as compensações amorosas. Peter olha além dela, busca força para falar observando a chegada da noite, que traz seu manto negro crivado de estrelas, alertando que aquela conversa precisa ter um desfecho qualquer.
             - Não chore. Você sabe que, ao fim das contas, conhecermo-nos foi um grande erro; manter essa relação até agora foi uma temeridade absurda.
            - Eu te amo, e isso me dá força para viver assim para sempre, Peter.
            - Romanesco isto! – ele busca no sarcasmo uma maneira de encerrar a discussão. – Bom seria se em ações você fosse tão determinada quanto é nas palavras! Vamos, levante-se, não esteja aí a fazer este papel patético de mártir. Creia, para alguém da sua linhagem, isto não cai bem, de forma nenhuma!
            Ela levanta-se vagarosamente, como se, afinal, percebesse que aquela atitude não era mesmo digna de si.
            - Que faremos, então? – ela murmura, limpando seu vestido caro.
            - Sinceramente, eu já disse a única alternativa viável para nós: o único recurso que pode nos libertar de vergonhas maiores é o divórcio. Mas, com toda essa sua paixão arrebatadora, por que reluta?
            - O seu amor me alimenta, Peter, me faz crer que posso ser feliz...
            - Sim, - ele a interrompe, - o amor alimenta, mas o casamento dignifica, não é? Isto é o que qualquer moça da elite diria! Um divórcio a esta altura seria um golpe insuperável a alguém como você, Kahmila.
            A noite avançava lentamente, e os dois ali, na varanda ainda, separados por uma parede de silêncio intermitentemente quebrada por frases curtas. Peter cospe para fora, no quintal, e finalmente, reunindo toda a paciência que lhe resta, aproxima-se dela, que encara o céu, totalmente distraída.
            -Kahmila... Pense nisso durante a noite; amanhã você me dá seu veredito. Saiba apenas que nenhuma outra opção pode ser considerada.
            Ela não responde nada, nem o olha nos olhos mais uma vez. Parte para o meio da noite e desaparece entre as trevas. Ele pensa em ir atrás dela, mas reflete por um segundo e desiste. Decide esperar até que ela volte por conta própria; não quer pressioná-la naquele instante crucial.
            O dia amanhece nublado e opaco, Peter acorda com batidas persistentes na porta da frente; quando vai ver atender, vê um menino de mais ou menos 10 anos de idade, maltrapilho, que lhe entrega uma carta sem remetente. Ele abre a carteira, retira uma nota qualquer e entrega ao moleque, que sai correndo, como se temendo que o homem lhe tome o dinheiro que deu. Ao abrir o envelope, Peter encontra apenas uma curta mensagem, escrita às pressas, com letra trêmula: “Fiz uma grande besteira, Peter. Pensei em tudo que você me disse sobre divórcio e decidi abrir o jogo, finalmente. Agora eu temo por você. Saia daí agora!”.
            Peter ficou por alguns instantes sem entender a totalidade da mensagem, mas, alarmado, pegou o chapéu e o paletó puído e preparava-se para sair, quando ouviu baterem à porta de novo. Ele deixou que batessem até desistirem; era o procedimento que ele usava quando não queria atender ninguém. Mas, as batidas continuaram, cadenciadas e aparentemente pacientes. Peter exasperou-se com aquela persistência e abriu a porta. Sentiu grande alívio ao ver um senhor de idade avançada, quase completamente calvo, baixo e com ar bonachão, carregando uma pequena pasta.
            - Que deseja? – perguntou Peter, meio irritado.
            - Perdão, meu nome é Henry... Henry Lockwood – apresentou-se o homem, já abrindo sua pasta, -  e gostaria de saber se o senhor estaria interessado em...
            - Não, obrigado! – o outro disse, já querendo fechar a porta. Porém, algo o deixou petrificado, antes que ele pudesse esboçar qualquer reação. O homem tirou uma pistola da pequena pasta e mirou na testa do outro.
            - Meu jovem, eu gostaria de saber se o senhor estaria interessado em se juntar à minha doce esposa.

            Poucos segundos depois, o som compacto de uma pequena explosão se fez ouvir por alguns metros ao redor da casa.

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